Depois que a
porta no carro fechou não falou uma palavra sequer. Alice estava encolhida em
um canto, com os braços cruzados e os olhos na janela. A luz do sol indo
diretamente para eles fez parecer que nunca foram tão azuis. De fato, nunca
foram. A doença que trouxe a beleza para seus olhos. O tom, antes opaco, estava
cada vez mais claro e brilhante. Porém, quanto mais bonitos ficavam menos ela
podia ver. As pessoas lhe falavam “como seus olhos são lindos!”, mas diante do
espelho ela não podia, ao menos, ver seu rosto.
O
carro parou. Olhou para a entrada, olhou para porta, olhou para seu quarto e
pra cama, mas não podia ver. Deitou-se, pensando em dormir, mas antes que
tivesse fechado os olhos um pensamento lhe tomou... E se quando abri-los novamente estiver completamente cega? Não
poderia dormir. E mal piscava agora. O medo de ficar cega só crescia. Ela
pensou que assim que acordasse não iria perceber, iria levantar da cama e
talvez chegar até o banheiro, só então perceberia que não via mais. Tentaria
ficar calma. Pediria ajuda. Então, escovaria os dentes primeiro. Como só
poderia contar com os sentidos, sentiria a água mais fria e maciez das cerdas
da escova. Não se lembraria de pentear os cabelos e vestiria as meias
diferentes. Na hora de ligar pra alguém se daria conta que não poderia olhar a
agenda. E quantos números sabe decorados? Com quantas pessoas poderia contar?
Com o tempo iria se acostumar. Andaria sempre para os mesmos lugares, com as
mesmas pessoas, comendo a mesma comida e vestindo as mesmas roupas. Nunca
mudaria o corte de cabelo ou a padaria, pois lá já sabiam escolher por ela. Com
o tempo esqueceria como é o caminho para o trabalho, o rosto de seus vizinhos,
que o céu muda de cor. Teria mais medo de ladrão e seria mais insegura com sua
aparência. Passaria a esperar menos da vida. E pensou... Já não é assim?
Adormeceu.
Alice
pôs-se a sonhar. Sonhou que estava cega. Em seu sonho estava cega há tanto
tempo que não lembrava como era o mundo. Como poderia sonhar então? Mas ela
queria. Decidiu sonhar um mundo seu. Cego não vê o mundo, então sonha com o que
deseja. Seu mundo seria diferente; seria de outro planeta. As casas não teriam
portas, o relógio não teria ponteiros, para toda janela haveria uma escada
(para o alto, claro), não haveria celular, email ou correio. Pombos correio,
talvez. Assim as pessoas olhariam para o
céu quando quisessem falar com alguém. Não existiriam palavras erradas, apenas
possibilidade de palavras novas, criadas a qualquer momento. Até morrer seria uma coisa boa e viver...
Seria estupendo! No mundo de Alice haveria uma pessoa que saberia todas as
coisas do seu mundo e da vida. Esta pessoa saberia todos os segredos da
medicina. Teria a cura para resfriado, dor de cabeça e dia abusado. Iria
ensiná-la que 1+1=1, risos devem ser multiplicados, lágrimas subtraídas e
abraços divididos. Com ela Alice iria aprender o que é chorar de felicidade.
Mas a coisa que não imaginou é que ela fosse fazê-la ver. Um dia deitaria na
grama e iria querer ver para além do céu. Ouviria: “Você não sabe que para ver
não se usa os olhos? Basta sentir”. Então Alice esticaria os braços e, tocando
o céu, poderia vê-lo.
Acordou
e estava cega. Coçava os olhos, fechava e abria novamente, mas não podia ver.
Lembrou-se de seu sonho. Lembrou-se do que aprendeu. Começou a sentir tudo.
Primeiro a si mesma, depois ao seu redor.
Acordou de
sobressalto e tentou segurar as lembranças daquele sonho estranho. Havia
sonhado que estava ficando cega e, no meio do sonho, sonhou que estava de fato
cega. Ainda confusa levantou. Seu mundo tinha outras cores, tudo ao seu redor
parecia mais claro e brilhante. Percebeu que poderia ver o mundo melhor se
também pudesse senti-lo. Olhou no espelho e admirou-se, foi ao trabalho por
um caminho diferente, comeu no parque, viu uma toca de coelho, tomou chá da
tarde, comprou para si um lindo chapéu, encontrou uma lagarta enquanto colhia
rosas brancas e vermelhas, contou estrelas na volta pra casa. Aquela noite
Alice foi dormir ansiosa. Queria sonhar de novo. Sonhar com seu mundo. Mas
sabia que sempre poderia fechar os olhos para chegar até ele.
"É o que vocês não sabem, não podem saber, o que é ter olhos num mundo de cegos."
(José
Saramago- Ensaio sobre a cegueira)