segunda-feira, 13 de agosto de 2012

Na dúvida entre quem eu realmente sou, a única certeza é a da loucura.


Existe a pessoa que sou e a pessoa que eu acho que sou. Acho que sou, acho que penso, acho que acho... Acho tanto que não encontro nada no abismo entre mim e eu mesma.



[...]até agora
você não tinha visto uma
escada que se parecesse com
uma escada
uma maçaneta que se parecesse com
uma maçaneta
e sons como esses sons

e quando a aranha aparece
e olha você
por fim
você já não odeia
por fim
com ela a milhas de distância
rindo com um 
louco.


(Charles B. - Comunhão)

sábado, 4 de agosto de 2012

Em terra de cego todo mundo é rei.



Depois que a porta no carro fechou não falou uma palavra sequer. Alice estava encolhida em um canto, com os braços cruzados e os olhos na janela. A luz do sol indo diretamente para eles fez parecer que nunca foram tão azuis. De fato, nunca foram. A doença que trouxe a beleza para seus olhos. O tom, antes opaco, estava cada vez mais claro e brilhante. Porém, quanto mais bonitos ficavam menos ela podia ver. As pessoas lhe falavam “como seus olhos são lindos!”, mas diante do espelho ela não podia, ao menos, ver seu rosto.
                O carro parou. Olhou para a entrada, olhou para porta, olhou para seu quarto e pra cama, mas não podia ver. Deitou-se, pensando em dormir, mas antes que tivesse fechado os olhos um pensamento lhe tomou... E se quando abri-los novamente estiver completamente cega? Não poderia dormir. E mal piscava agora. O medo de ficar cega só crescia. Ela pensou que assim que acordasse não iria perceber, iria levantar da cama e talvez chegar até o banheiro, só então perceberia que não via mais. Tentaria ficar calma. Pediria ajuda. Então, escovaria os dentes primeiro. Como só poderia contar com os sentidos, sentiria a água mais fria e maciez das cerdas da escova. Não se lembraria de pentear os cabelos e vestiria as meias diferentes. Na hora de ligar pra alguém se daria conta que não poderia olhar a agenda. E quantos números sabe decorados? Com quantas pessoas poderia contar? Com o tempo iria se acostumar. Andaria sempre para os mesmos lugares, com as mesmas pessoas, comendo a mesma comida e vestindo as mesmas roupas. Nunca mudaria o corte de cabelo ou a padaria, pois lá já sabiam escolher por ela. Com o tempo esqueceria como é o caminho para o trabalho, o rosto de seus vizinhos, que o céu muda de cor. Teria mais medo de ladrão e seria mais insegura com sua aparência. Passaria a esperar menos da vida. E pensou... Já não é assim? Adormeceu.
                Alice pôs-se a sonhar. Sonhou que estava cega. Em seu sonho estava cega há tanto tempo que não lembrava como era o mundo. Como poderia sonhar então? Mas ela queria. Decidiu sonhar um mundo seu. Cego não vê o mundo, então sonha com o que deseja. Seu mundo seria diferente; seria de outro planeta. As casas não teriam portas, o relógio não teria ponteiros, para toda janela haveria uma escada (para o alto, claro), não haveria celular, email ou correio. Pombos correio, talvez.  Assim as pessoas olhariam para o céu quando quisessem falar com alguém. Não existiriam palavras erradas, apenas possibilidade de palavras novas, criadas a qualquer momento.  Até morrer seria uma coisa boa e viver... Seria estupendo! No mundo de Alice haveria uma pessoa que saberia todas as coisas do seu mundo e da vida. Esta pessoa saberia todos os segredos da medicina. Teria a cura para resfriado, dor de cabeça e dia abusado. Iria ensiná-la que 1+1=1, risos devem ser multiplicados, lágrimas subtraídas e abraços divididos. Com ela Alice iria aprender o que é chorar de felicidade. Mas a coisa que não imaginou é que ela fosse fazê-la ver. Um dia deitaria na grama e iria querer ver para além do céu. Ouviria: “Você não sabe que para ver não se usa os olhos? Basta sentir”. Então Alice esticaria os braços e, tocando o céu, poderia vê-lo.                
                Acordou e estava cega. Coçava os olhos, fechava e abria novamente, mas não podia ver. Lembrou-se de seu sonho. Lembrou-se do que aprendeu. Começou a sentir tudo. Primeiro a si mesma, depois ao seu redor.

Acordou de sobressalto e tentou segurar as lembranças daquele sonho estranho. Havia sonhado que estava ficando cega e, no meio do sonho, sonhou que estava de fato cega. Ainda confusa levantou. Seu mundo tinha outras cores, tudo ao seu redor parecia mais claro e brilhante. Percebeu que poderia ver o mundo melhor se também pudesse senti-lo. Olhou no espelho e admirou-se, foi ao trabalho por um caminho diferente, comeu no parque, viu uma toca de coelho, tomou chá da tarde, comprou para si um lindo chapéu, encontrou uma lagarta enquanto colhia rosas brancas e vermelhas, contou estrelas na volta pra casa. Aquela noite Alice foi dormir ansiosa. Queria sonhar de novo. Sonhar com seu mundo. Mas sabia que sempre poderia fechar os olhos para chegar até ele.



"É o que vocês não sabem, não podem saber, o que é ter olhos num mundo de cegos."
                                                                    (José Saramago- Ensaio sobre a cegueira)

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