sexta-feira, 27 de agosto de 2010

"Feliz daquele que, ao meio-dia, se percebe em plena treva, pobre e nu".(Hélio Pellegrino)

5° ATO

Enquanto lavava os cabelos, pensei por que trabalho nisto. Rostos por todos os lados, mas sempre só. Apertos de mão, abraços, elogios e dinheiro. Por que se importam tanto? O que faço é para mim! Logo o xampu vai embora; e a compaixão com ele. Eu tenho que pagar minhas contas. "Eu tenho que pagar minhas contas", meu pai sempre dizia. Um dia ele não achou como, e decidiu que morrer era mais barato do que viver. Com mulher e filhos não é fácil. Com o emprego ruim, a casa velha, comida pouca. Sem poder tomar sua cachaça e sustentar a vagabunda não é fácil. Morrer sim! Isto é fácil. Apenas uma dose... Foi seu último gasto. Eu tive que pagar nossas contas. Tive que ter a coragem que ele não teve. Para largar a vagabunda, deixar a cachaça, trazer comida, trocar de casa e, principalmente, sair do emprego ruim. Ainda me restou o suficiente para sair daquele buraco, onde ele ficou enterrado. Mas aprendi muito; aprendi a fazer tudo diferente do que me ensinaram. Treinaram-me para dar as pessoas o que elas querem. Hoje eu lhes dou o que eu quero e elas pagam por isto. Papai ficaria orgulhoso de mim. Mas este sentimento... Elas não percebem que quadros não são o mundo? Como podem querer o mundo que eu criei pra mim? Roupa, sapatos e o resto daquele perfume. São os dejetos destas pessoas estúpidas que fazem do mundo uma merda. Chaves, algum dinheiro e o isqueiro quase vazio. Não preciso de muito. A vida não me deixa esquecer isto.

"O homem, quando jovem, é só, apesar de suas múltiplas experiências". (Hélio Pellegrino)

4° ATO

O calendário teima em dizer que é um novo dia, mas, para mim, todos são iguais. A platéia é o que sempre muda. Ou não... Há muito não reparo. É mais confortável assim. Quantos rostos diferentes podem existir? Bêbados, prostitutas, pseudos bons maridos e estudantes com cérebros mortos. Dizendo mentiras que me inclino a acreditar e verdades que jamais seriam ditas fora daqui. Belas vozes, palavrões escrotos, maldizeres e falsos elogios. Ouço tudo, até começar a tocar. Tiro o instrumento da caixa e o mundo começa a se distanciar. Coloco a boca. E, deste beijo, surge à música.

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

“O começo da sabedoria consiste em perceber que temos e teremos as mãos vazias”. (Hélio Pellegrino)

3° ATO

Já tenho tudo em mãos, afinal não é difícil levar o material de trabalho se você é músico. Aprendi a tocar ainda na adolescência. Pareceu interessante, para quem ia ficar tanto tempo na cama, depois de ter a perna estraçalhada pelas ferragens de um carro popular. Nunca planejei esta profissão, mas diante de tantas coisas que planejei e não aconteceram, fico com as que restaram. Os vermes não são os únicos animais que podem passar a vida comendo restos. Em noites, sem sono e cigarro, confundo “viver” e “sobreviver”. Mesclam-se num quase igualar, até que eu finalmente consiga a proeza de não pensar em mais nada. Agora, os números digitados, no contrato feito para não ser entendido, dizem que eu tenho que sair. Eles sabem meu número, não tenho mais como não ir. O caminho sempre muda... Mas de onde vêm tantos carros? Parece que todos desaprenderam a andar. Eu tento não pensar, mas o pensamento insiste em sobreviver. Maldita fraqueza, a minha. Não sou capaz de matar se quer um pensamento!
Ainda bem que cheguei. Tocar faz com que eu não escute meus pensamentos. Ao menos um momento de paz.

"Neste momento, a solidão nos atravessa como um dardo". ( Hélio Pelegrino)

2° ATO


Eu sempre achei que não tinha senso de direção. Estranhava o fato de nunca achar o mesmo lugar. Para mim, até mesmo achar minha casa era difícil. Nunca me passou pela cabeça que, antes de sair procurando algum lugar, eu teria de saber para onde quero ir. E isto, eu vejo, que nunca soube.
Por isto escapo para meu trabalho. Insisto que é o único momento que tenho domínio. Tudo se da sob minhas mãos. É através delas que um mundo se forma... O meu mundo. Neste mundo a história muda todos os dias. Mediante minha regência, ele vai tomando forma, adquirindo características e cores. Mas quando saio da câmara escura, dou de frente com o outro. Por causa deste outro eu mudo. Vou pastosamente me adequando ao recipiente que ele me impõe. Numa forma de compaixão, com quem não irá me entender. O que eu não entendo é esta compaixão que sinto. Este monstro que alimento, mesmo sabendo que um dia irá me devorar. A cada pôr-do-sol ele se alimenta da minha dor e cospe angústia no meu rosto. E, da varanda, tento manter a concentração no meu copo, enquanto ao meu redor tudo muda.

Quem sou eu

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PE, Brazil
Um constante vir a ser. Seguindo a sombra dos moinhos de vento...