domingo, 12 de dezembro de 2010

Sonhos de uma noite de verão - 2° devaneio.

O peito apertado. O ar falta. Mas ainda sobra para lembrar. Quando os assaltos começaram... As pessoas não sentem; estavam tirando sua vida! Ele teve que pegar algo em troca. E mesmo assim, ainda era tão injusto. Ele estava cansado disto. De esperar o fim, a única coisa da qual ele tinha certeza. Mas, há tempos, nem isto ele tem mais. Foi quando a conheceu. Bastou vê-la rapidamente de longe e soube que seria ela. Aproximou-se o mais rápido que pôde, pronto para o medo, a angustia, a dor. Que surpresa, a dele! Ela não tinha nada disto a oferecer. Recebeu-lhe como a qualquer outro, o olhou nos olhos e perguntou o que ele queria. Sua face era pálida e sem expressão. Assim deveria ser a morte. “O que eu quero?” Pensava nisto. Nunca havia pensado antes, pois não sabia que poderia escolher. Agora é tarde. As duas mãos já estão encharcadas, do sangue que sai do ferimento feito pela faca. Sua própria faca.  Ele não suportou a pergunta. “O que você quer?” Como alguém poderia perguntar isto? Definitivamente, era a morte. Ela deve sentir. Então decidiu dividir com ela, sua dor, seu tormento. Lutaram... E ela venceu. Ou ele queria perder? Agora ele lembra. O cheiro não é pós-barba, é o perfume da morte. Ele olhou para trás; para sua vida. O ferimento era profundo e ele sabia o que significava. Pensou no que queria. E começou a caminhar para trás. Imaginou estar recém banhado, uma noite quente, um passeio tranqüilo e uma bela praça. Estava distraído demais para ouvir a brisa que lhe dizia: “É tudo coisa da sua imaginação!”. E morreu em uma das noites mais frias do ano.

domingo, 5 de dezembro de 2010

Sonhos de uma noite de verão - 1° Devaneio


Era uma noite quente. Estranhamente quente, para aquela cidade fria e sem vida. Não costumava fazer isto, mas saiu para dar uma volta. Deve ter algo a ver com a noite quente. O silencio. A escuridão... A escuridão não muito, pois ela sempre esteve ali. Ele só não via, e era melhor assim. Ele queria que fosse diferente da última cidade que morou, porém são todas iguais. E sempre será até ele descobrir que quem não muda é ele. No entanto, ele não se olha mais no espelho. Ele nem sabe que ainda está vivo.
Tinha acabado de tomar um banho, mas não foi suficiente para passar o calor. Então decidiu sair espalhando o cheiro do seu pós-barba, em uma rua que não tivesse ninguém para sentir. Puro desperdício. Ele não sabe. Ele tem o dom de ignorar sua ignorância.  O suor desceu pelo seu pescoço e, ao passar a mão, sentiu um corte no rosto. O sangue escuro nos dedos. Viscoso, com um vermelho inconfundível. Como não pôde sentir ao se cortar? Parado. No meio da calçada, que não irá levá-lo para lugar algum, olha para a pequena mancha de sangue. “Bom, posso não ter sentido... mas sangue é vida! Ainda estou vivo, afinal!” Tolo. Mais uma vez ignora o sentimento. Continua caminhando até achar uma praça. Ah, está tão cansado... Deve ser o calor. Parece que toda a cidade dorme, enquanto ele sangra. Eles também não sentem. Melhor assim. É tão silencioso. E uma brisa começa a saltitar pela praça. Ora de um lado, ora de outro. Até parece que quer lhe dizer algo nos ouvidos. Aquela praça parece com a que tinha em frente a sua casa, quando era pequeno. Lá era um bom lugar. A praça, a casa, a vida... Tudo era bom. O suor continuava a escorrer mais viscoso. Parece que ele não queria deixar de fazer parte do seu corpo; se agarrando, lutando para não sair. Mas pesa... O suor, as roupas, os pêlos, o ar... O ar! Está faltando. Ele já se sentiu assim. Ah, sim... Começa a lembrar do que aconteceu. De quando sentia. Sentia tanto. Por si mesmo, pelos outros. Por que o mundo era tão cruel com ele? Ele sentia... Que sentia demais para viver. Mas continuou, pois nunca viu alternativa.

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Gosto de chuva.

Parece que hoje vai chover. Ele não reparou nisto quando saiu de casa. Antes mesmo de o sol nascer, foi para qualquer lugar. Ele disse que iria, mas ninguém quis acreditar (ou não tinha ninguém pra ouvir). Hoje a vizinha não vai ouvir o seu cantarolar ao sair de casa. Vai sentir falta de algo, mas não vai saber dizer o que é. Hoje a mocinha, que trabalha no mercado perto dali, não vai sentir o cheiro de café quando passar pela sua porta. E vai sentir falta de algo, mas vai estar atrasada demais para pensar nisto. O gato malhado, com a ponta do rabo quebrada, vai chegar na hora do almoço, e a porta estará fechada. Este sim sabe o que falta! Mas não pode dizer para ela. Nem pra ninguém. E ele continua caminhando, sem pensar em nada disto. Agora ele só quer saber se vai chover. Quando começou a pensar para onde ir um pingo caiu bem em seu ombro. Não demorou muito para que o resto viesse junto. Só que aquela era uma chuva estranha... Fininha... Lenta... Ele quase não percebeu que já estava todo molhado. Foi quando deixou a boca abrir... Ou ela abriu só? Não importa, importa o gosto que a chuva tinha. Sim! Tinha gosto! A garganta apertou e, antes que pudesse segurar, escapou uma lágrima. Olhou para o céu, apertou os olhos para ver melhor, e lá estava seu pai dizendo: "Homem não chora!". E ele dirá, sem abrir a boca: "Eu sei, mas eu não tenho culpa. Tomei chuva com gosto de melancolia."

terça-feira, 19 de outubro de 2010

O batismo de Ana doida.

Ana é doida. Não sei ao certo quando ela chegou, mas parece que sempre esteve aqui. Ontem eu estava olhando pela janela e a vi parada, como sempre. Olhando pra um nada que aparenta ser mais sólido que meu tudo. Levantou-se e foi até a fonte, carregando sua bolsa. Engraçado como, por inúmeras vezes, eu achei meu apê pequeno e vazio... Mas para Ana, só uma bolsa é suficiente. Seus pertences podem se pegos em qualquer lugar. E seu lugar é o mundo. Ana é livre. Ela sentou na beira da fonte e abriu, cuidadosamente, a bolsa, tirou um tecido, não muito branco, mas não completamente sujo. Colocou-o sobre suas pernas, tirou o que parecia um copo. Se bem que não importa tanto. Para Ana, uma coisa pode se transformar em qualquer outra. Ana é plástica. Mas veja bem, não deixe que meus olhos sejam os seus. Ela não muda facilmente. A questão é que Ana é assim. Se de outra forma fosse, não seria ela. Fechou a bolsa, delicadamente, pegou água da fonte, jogou sobre a cabeça, mas com todo cuidado, para não molhar seu pano. Ana também tem uma lógica. Só não é como a minha ou a sua. Depois de jogar água na cabeça pela terceira vez, o pano foi posto de lado e o corpo entrou por completo na fonte. Antes apenas os pés molhados, agora todo o corpo estava imerso naquela água suja. E pensei, por um minuto, que não era sujeira, mas os pecados que Ana estava deixando na água. Ela ergueu o corpo, pegou o pano, enxugou apenas o rosto, para acabar seu ritual. Talvez ela estivesse apenas tomando um banho, mas, para mim, Ana sabe das coisas. Ana sabe esquecer. Ana é a-temporal. Pegou sua bolsa e foi para seu lugar. Neste momento, que só sobrou eu e minhas coisas inúteis, eu quis ser Ana. As três Anas que eu vi. Eu quis ser três vezes doida. Hoje eu sei que foi a melhor coisa que quis. Mas tenho contas a pagar.

sábado, 4 de setembro de 2010

"Acontece, entretanto, que nascemos para o encontro com o outro, e não o seu domínio. Encontrá-lo é perdê-lo, é contemplá-lo na sua libérrima existência, é respeitá-lo e amá-lo na sua total e gratuita inutilidade". (Hélio Pellegrino)

6° ATO

Era pequeno e imerso na penumbra. Não sabe se é devido à iluminação fraca ou a nuvem de fumaça que cobre o lugar. Vozes se misturam, fazendo com que seja difícil ouvir a música ao fundo. Todos buscando uma solução que deveria sair de um copo. Mas não chega... Não seria assim tão fácil. Todos se olham, mas não enxergam ninguém. Nem, ao menos, percebem quando mais uma pessoa entra. Ainda com as chaves na mão, cabelos recém lavados e um perfume agradável; se não fosse o cheiro que está impregnado no ar. Por um segundo a música parou. E a música não para por nada. Retirou o isqueiro do bolso, depois de sentar em frente ao palco. Tentou uma vez; duas vezes; na terceira veio à chama, trazendo um sorriso consigo. Levanta a mão para chamar o garçom. Muito magro, de olhos fundos, cansados de chorar a perda de sua mulher. Mas aqui ele não chora; ele anota o pedido e logo volta, carregando o copo. A música que vinha do palco se tornava cada vez mais envolvente, porém ninguém se importava. Tão ligado ao instrumento; como se fosse uma extensão dele mesmo. Barba por fazer, roupas simples. Sentado, pois depois de um grave acidente, lhe incomoda ficar em pé muito tempo (mas ela não sabe disto). Parte de seu cabelo colado no rosto pelo suor. E ele, ignorando este detalhe, que só ela repara, toca sem parar. Ele abre os olhos e olha diretamente para ela. Seus olhos são sombrios; como as ruas que já passou. Realçam a palidez de sua pele e embriagam como sua música. Seu rosto... É único. E aquele asco que sentiu ao entrar foi embora. Ela não percebeu, mas ele, tão indiferente, viu além de si mesmo. Olhou para o outro. Olhou para ela. Ela não era como os outros. Não tinha dor em seus olhos, nem arrependimentos. Não estava ali para esquecer, não tentava fugir. Não foi buscar nada. Olhava para ele e ouvia sua música. Naquele momento isto lhe satisfazia. E ele percebeu que a ele também. Era o que bastava. Foi quando o cigarro apagou e só os dois sabiam que o fluido do isqueiro havia acabado.

sexta-feira, 27 de agosto de 2010

"Feliz daquele que, ao meio-dia, se percebe em plena treva, pobre e nu".(Hélio Pellegrino)

5° ATO

Enquanto lavava os cabelos, pensei por que trabalho nisto. Rostos por todos os lados, mas sempre só. Apertos de mão, abraços, elogios e dinheiro. Por que se importam tanto? O que faço é para mim! Logo o xampu vai embora; e a compaixão com ele. Eu tenho que pagar minhas contas. "Eu tenho que pagar minhas contas", meu pai sempre dizia. Um dia ele não achou como, e decidiu que morrer era mais barato do que viver. Com mulher e filhos não é fácil. Com o emprego ruim, a casa velha, comida pouca. Sem poder tomar sua cachaça e sustentar a vagabunda não é fácil. Morrer sim! Isto é fácil. Apenas uma dose... Foi seu último gasto. Eu tive que pagar nossas contas. Tive que ter a coragem que ele não teve. Para largar a vagabunda, deixar a cachaça, trazer comida, trocar de casa e, principalmente, sair do emprego ruim. Ainda me restou o suficiente para sair daquele buraco, onde ele ficou enterrado. Mas aprendi muito; aprendi a fazer tudo diferente do que me ensinaram. Treinaram-me para dar as pessoas o que elas querem. Hoje eu lhes dou o que eu quero e elas pagam por isto. Papai ficaria orgulhoso de mim. Mas este sentimento... Elas não percebem que quadros não são o mundo? Como podem querer o mundo que eu criei pra mim? Roupa, sapatos e o resto daquele perfume. São os dejetos destas pessoas estúpidas que fazem do mundo uma merda. Chaves, algum dinheiro e o isqueiro quase vazio. Não preciso de muito. A vida não me deixa esquecer isto.

"O homem, quando jovem, é só, apesar de suas múltiplas experiências". (Hélio Pellegrino)

4° ATO

O calendário teima em dizer que é um novo dia, mas, para mim, todos são iguais. A platéia é o que sempre muda. Ou não... Há muito não reparo. É mais confortável assim. Quantos rostos diferentes podem existir? Bêbados, prostitutas, pseudos bons maridos e estudantes com cérebros mortos. Dizendo mentiras que me inclino a acreditar e verdades que jamais seriam ditas fora daqui. Belas vozes, palavrões escrotos, maldizeres e falsos elogios. Ouço tudo, até começar a tocar. Tiro o instrumento da caixa e o mundo começa a se distanciar. Coloco a boca. E, deste beijo, surge à música.

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

“O começo da sabedoria consiste em perceber que temos e teremos as mãos vazias”. (Hélio Pellegrino)

3° ATO

Já tenho tudo em mãos, afinal não é difícil levar o material de trabalho se você é músico. Aprendi a tocar ainda na adolescência. Pareceu interessante, para quem ia ficar tanto tempo na cama, depois de ter a perna estraçalhada pelas ferragens de um carro popular. Nunca planejei esta profissão, mas diante de tantas coisas que planejei e não aconteceram, fico com as que restaram. Os vermes não são os únicos animais que podem passar a vida comendo restos. Em noites, sem sono e cigarro, confundo “viver” e “sobreviver”. Mesclam-se num quase igualar, até que eu finalmente consiga a proeza de não pensar em mais nada. Agora, os números digitados, no contrato feito para não ser entendido, dizem que eu tenho que sair. Eles sabem meu número, não tenho mais como não ir. O caminho sempre muda... Mas de onde vêm tantos carros? Parece que todos desaprenderam a andar. Eu tento não pensar, mas o pensamento insiste em sobreviver. Maldita fraqueza, a minha. Não sou capaz de matar se quer um pensamento!
Ainda bem que cheguei. Tocar faz com que eu não escute meus pensamentos. Ao menos um momento de paz.

"Neste momento, a solidão nos atravessa como um dardo". ( Hélio Pelegrino)

2° ATO


Eu sempre achei que não tinha senso de direção. Estranhava o fato de nunca achar o mesmo lugar. Para mim, até mesmo achar minha casa era difícil. Nunca me passou pela cabeça que, antes de sair procurando algum lugar, eu teria de saber para onde quero ir. E isto, eu vejo, que nunca soube.
Por isto escapo para meu trabalho. Insisto que é o único momento que tenho domínio. Tudo se da sob minhas mãos. É através delas que um mundo se forma... O meu mundo. Neste mundo a história muda todos os dias. Mediante minha regência, ele vai tomando forma, adquirindo características e cores. Mas quando saio da câmara escura, dou de frente com o outro. Por causa deste outro eu mudo. Vou pastosamente me adequando ao recipiente que ele me impõe. Numa forma de compaixão, com quem não irá me entender. O que eu não entendo é esta compaixão que sinto. Este monstro que alimento, mesmo sabendo que um dia irá me devorar. A cada pôr-do-sol ele se alimenta da minha dor e cospe angústia no meu rosto. E, da varanda, tento manter a concentração no meu copo, enquanto ao meu redor tudo muda.

sexta-feira, 30 de abril de 2010

"É meio-dia em nossa vida, e a face do outro nos contempla como um enigma". (Hélio Pellegrino)

1° Ato


As ruas daqui sempre foram escuras. Pelo menos desde que me mudei para cá, há uns oito anos. Porém não me preocupo, pelo contrário, fico observando a escuridão, contrastando com o céu avermelhado de poluição. Quando vou dar minha colaboração no efeito estufa, fumando na varanda, fico olhando para o alto, na tentativa de ver o céu. Meus dedos pegam lentamente o cigarro, para dar inicio ao ritual. O fósforo deslizando na caixa, para fazer nascer a chama. E o meu pequeno suicídio diário recomeça. Já tentei parar, mas me pego me torturando com coisas bem piores. Eu também teria de parar com meus pensamentos.
Quando o sol se põe, entre becos e avenidas, vou caminhando sem saber para onde. Nestas ruas escuras as pessoas nunca se repetem. Como se cada dia se tornassem diferentes e só eu permaneço como sou. Acordo todos os dias e nada está como era antes. Como se a noite tivesse este poder de transformação e a luz do dia completasse este ciclo de metamorfoses. Que se repete... Meu despertador toca as seis. Finalmente as cortinas são abertas, pois é a noite que a vida começa para mim. Às vezes há um imprevisto e tenho que sair durante o dia. Mas sei bem que não sou eu. Eu não vivo de dia, apenas vou caminhando de acordo com a necessidade. De forma que quando isto ocorre é por culpa do outro. Tento fugir do outro. Evitar o confronto desencadeado por ele, que se passa em mim. Sem ele o mundo é meu e tudo que se da é para meu prazer. No encontro com o outro, coloco-me defronte as minhas inquietações, personificadas num ser que está diante de mim. Fugindo do outro fujo de mim. Mas agora é noite. E evito pensar em tudo isto. Respiro fundo, deixando o ar entrar em meus pulmões sujos.

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PE, Brazil
Um constante vir a ser. Seguindo a sombra dos moinhos de vento...