quinta-feira, 28 de março de 2013

Poema para ela


1. Eis que cego e surdo...
 


Chega mais perto e contempla as palavras. Cada umatem mil faces secretas sob a face neutra e te pergunta, sem interesse pela resposta, pobre ou terrível, que lhe deres: Trouxeste a chave?
(Carlos Drummond de Andrade )



Ele poeta, ela dançarina. Moravam em prédios distintos, mas podiam se ver através das portas da varanda. O espelho que ela usava para conferir a postura estava colocado de forma que ela sempre estava de frente a ele. Assim, quando já estava exausta, voltavam sua atenção para o quarto andar em frente ao seu. O computador que ele usava ficava na sala, perto da varanda, porém raramente era usado. Ele estava sempre escrevendo a punho. E, quando não lhe visitava as musas da inspiração, ele acompanhava cada movimento da dançarina. Ela movimentando-se delicadamente, ele deslizando em seus pensamentos, pareciam estar na mesma dança, ambos no quarto andar, lado a lado, separados apenas por um vazio material.
Alguns dias ela tentava um movimento arriscado e, pela falta de preparo ou de sorte, acabava se machucando. Ele sentiria falta de vê-la, sem que ela soubesse. Outros dias ele visitava sua mãe em uma cidade distante e ela sentiria falta de sua presença silenciosa, seu rosto pálido e como passava as mãos no cabelo quando parecia não saber mais o que escrever.
Um dia voltando para casa ao fim da tarde observou um rosto familiar na banca de jornal. Era seu vizinho. Agora que havia se aproximado não tinha duvidas. Ela teve vontade de falar com ele, mas o que dizer? Neste breve instante ele foi embora levando um jornal, sem que a visse do seu lado. Apressou-se em pedir ao jornaleiro o mesmo que o moço tinha acabado de comprar. Ali mesmo abriu o jornal na tentativa de descobrir algo sobre seu vizinho. Tratava-se de um jornal desconhecido, de pouca circulação. Já tinha visto uma ou duas vezes, mas nunca lido. Comentários políticos... Críticas de filmes... Tamanha foi sua surpresa quando, na quarta página, viu uma pequena foto de seu vizinho. Ao lado de sua foto havia um poema: “Pássaros noturnos”. Ao final estava assinado apenas “D.”
Não entendia por que aquilo lhe deixou tão entusiasmada, nem esta imensa necessidade de conhecer seu vizinho. Imaginava que ele fosse professor ou escritor... Mas ele era um poeta! Ele fazia arte, assim como ela. O que o inspirava? Teria alguma musa? Ele faria um poema sobre ela? Sempre fora apaixonada por poesia, mas nunca imaginou que poderia conhecer um poeta. Seu poeta.
Nas semanas seguintes ela continuou voltando a banca de jornal. O dono já sabia o que ela queria e aparecia no mesmo horário (poucos depois que os jornais chegavam). Sempre tinha a esperança de ler sobre uma linda dançarina talentosa, mas nunca aconteceu. Certa vez a sua expressão de descontentamento foi grande, mas não foi maior que a sua expressão de susto quando ouviu alguém perguntar: “Não gostou?”. Era seu poeta! Do seu lado! Depois de observa-la lendo, ainda em frente a banca.
- Você é minha vizinha, não? Desculpe se lhe assustei. É que pareceu não gostar do meu poema.
- Não! Imagina! Seu poema é lindo! Eu que demorei a entender. Não tenho a chave que abre as portas da poesia...
- Qual o seu nome? Me chamo Dirceu.
- Prazer finalmente conhecê-lo, Dirceu. Meu nome é Marília.
- Ora, que curiosa coincidência! Foi um prazer conhecê-la, Marília, mas tenho que ir.
Despediram-se cordialmente. Ele foi para esquerda e ela para direita. É pra lá que ficava o cartório e ela precisava urgentemente mudar seu nome para Marília.



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